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“Como assim? Só por aprovar as demonstrações financeiras?”

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Por Andoni Hernández Bengoa, sócio, e Raffi Aniz, associado do Demarest Advogados

Essa é uma frase que nós assessores legais escutamos diversas vezes ao tratarmos com clientes estrangeiros, no Brasil, quando explicamos as consequências (muitas vezes a posteriori) da aprovação das contas e demonstrações financeiras.

A legislação brasileira estabelece que a aprovação assemblear, sem ressalvas, dos relatórios financeiros e de gestão resulta na exoneração da responsabilidade dos administradores da sociedade (§3º dos artigos 134 da Lei das S.A. e 1.078 do Código Civil). Dessa maneira, ainda que haja a previsão da possibilidade de ressalva, por regra, equivocadamente, se mistura aprovação com concordância. Por se tratar de dois tópicos de natureza diferente, não sendo a concordância uma mera hipótese de ressalva na aprovação, como será debatido, as consequências jurídicas da validação das demonstrações financeiras e das contas nem sempre são percebidas em toda sua extensão pelos sócios (especialmente os estrangeiros).

Conforme suscitado por Nelson Eizirik, a análise dos relatórios origina duas deliberações distintas: uma quanto à regularidade da elaboração dos documentos e o fato de traduzirem a realidade, e outra quanto ao juízo de valor referente ao trabalho dos administradores (1). Acreditamos que a legislação gera uma confusão ao colocar junta e indissoluvelmente a aprovação das contas e demonstrações financeiras com o juízo de valor relacionado à gestão da sociedade, pois são completamente diferentes em sua natureza e efeitos.

Os relatórios de prestação de contas dos administradores, assim como as demonstrações financeiras e demais demonstrativos contábeis, expressam as decisões tomadas e os números contábeis de determinada sociedade durante o exercício e, o fato dos sócios concordarem que sejam fidedignos não significa que também concordem com a forma como a sociedade foi gerida. É perfeitamente possível concluir: sim, os números são esses, as decisões foram de fato essas, porém, a sociedade foi mal gerida.

A preocupação nesse ponto se refere à quitação que é dada aos administradores no momento em que tais documentos são aprovados pelos sócios. Diante da quantidade de escândalos de corrupção envolvendo empresas, deflagrados, principalmente, pela operação Lava-Jato, a preocupação com Compliance é crescente, tanto interna como externamente. As empresas visivelmente estão buscando fortalecer suas áreas de Compliance e anticorrupção para atender as demandas do mercado e de investidores, nacionais e estrangeiros.

Nessa linha, partindo do pressuposto de que a aprovação das contas e demonstrações financeiras é fundamental para a continuidade da atividade empresarial, afetando diretamente a questão operacional e o relacionamento da empresa, seja diante de stakeholders ou do próprio mercado, é comum que, perante uma avaliação negativa da gestão realizada, ou simplesmente ante a falta de critério suficiente para aprova-la, os sócios se coloquem diante do seguinte dilema: o que é melhor, aprovar e emitir a quitação, ou questionar e atravancar o seguimento do meu negócio?

Como ressalta o professor Carvalhosa, a aprovação ou rejeição dos documentos da administração só pode ser feita de forma integral, não havendo a possibilidade de retificações ou emendas (2), o que demonstra a possibilidade de entrave que geraria eventual recusa integral das contas.

Pensando, essencialmente, em empresas nas quais os sócios são estrangeiros ou que integram grupo de atuação internacional – com sede no exterior – e, por isso, possuem diversas filiais em variados países, a autonomia e poder de gerência do administrador (situado no Brasil) é ainda maior, pois os sócios, além de estarem distantes, possuem diversas empresas para analisarem e tantas legislações e mercados para decifrarem.

Devido à citada distância do sócio estrangeiro, quem acompanha a empresa de perto é o administrador, que possui maior conhecimento do funcionamento do mercado e da burocracia brasileira. Na grande maioria das vezes, esses sócios – pessoas físicas ou jurídicas – são representados por procuradores e, quase sempre, não possuem relação pessoal, mas apenas profissional com estes (reduzindo, em muitos casos, a sensação de segurança do sócio). Sendo assim, são esses procuradores que votam a deliberação assemblear que irá aprovar as contas e demonstrações financeiras. Ora, não parece razoável pensar que deva-se exigir dos sócios avaliar, simultaneamente e dentro do prazo legal para a aprovação das demonstrações financeiras, a gestão da sociedade a ponto de eximir os administradores de qualquer responsabilização futura.

Propositalmente não citamos, até então, a gestão fraudulenta – que gere erro ou dolo na aprovação assemblear –, uma vez que, quanto a essa, há sim meios de reverter a quitação de responsabilidade dos administradores. Então qual o intuito de levantar a questão do Compliance? Esbarraremos em um outro problema, senão, vejamos:

Se a aprovação for realizada sem reservas e posteriormente se descobre erro, dolo ou simulação, há que se anular a deliberação, e, consequentemente, a quitação outorgada ao administrador, para que seja possível responsabilizá-lo. No entanto, o prazo prescricional para anulação de deliberação assemblear é de dois anos (3), enquanto o prazo prescricional para responsabilização de administrador seria de três anos (4).

Assim sendo, diminuiria em um ano o prazo para se responsabilizar os administradores que tenham praticado gestão fraudulenta, indo em desencontro ao caminho de combate e prevenção de práticas de corrupção, que tanto tem sido demandado no Brasil. Ainda estamos distantes de tal objetivo, e o impacto que tem sido gerado nas empresas inevitavelmente afeta a economia e a imagem que se passa para os investidores estrangeiros.

Enxergamos que a possibilidade de responsabilizar o administrador, ainda que de forma solidária, pode ajudar a coibir gestões fraudulentas/corruptas, e que, além disso, como já funciona em outros países, a troca de gestão poderá gradualmente significar a mudança de perfil da própria companhia, que não necessariamente irá afundar, e que terá mais chances de se reerguer. Na mesma medida, a eventual insegurança de investidores estrangeiros poderá ser menor, criando-se possivelmente gestões mais seguras.

Para mitigar os efeitos indesejados, o primeiro passo seria, sem dúvidas, a separação formal dos assuntos/deliberações durante as Assembleias Ordinárias. Há que se entender que são dois pontos diferentes: aprovar as contas e demonstrações financeiras e aprovar a gestão efetuada pelos administradores e, só assim, será possível aprovar as contas e demonstrações financeiras sem concordar necessariamente com a gestão. Não seria uma ressalva à aprovação, mas, como já explicitado, duas manifestações diferentes. Aprovo que os documentos apresentados são verossímeis à realidade da empresa, mas não concordo com as decisões tomadas pela administração durante a gestão.

Além disso, separar os pontos e dedicar um tópico para cada um deles na ordem do dia trará maior independência e destaque para ambos, reforçando a necessidade de se avaliar a fundo a gestão da companhia e possibilitando, inclusive, que sejam pensados novos métodos de Compliance a serem implantados/exigidos para análise da gestão.

 

 

As opiniões e conceitos emitidos no texto [acima] não refletem, necessariamente, o posicionamento do Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças (IBEF) a respeito do tema, sendo seu conteúdo de responsabilidade do autor.
1 EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada. Volume II – Arts. 121 a 188. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 162 e 163.
2 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas: arts. 75 a 137: Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976, com as modificações da Lei n. 12.431, de 24 de junho de 2011. 6.ed. – São Paulo: Saraiva, 2014, p. 1153.
3 Art. 286, Lei 6.404/76 (“Lei das S. A.”): Art. 286. A ação para anular as deliberações tomadas em assembléia-geral ou especial, irregularmente convocada ou instalada, violadoras da lei ou do estatuto, ou eivadas de erro, dolo, fraude ou simulação, prescreve em 2 (dois) anos, contados da deliberação.
4 Art. 287, II, b, Lei 6.404/76 (“Lei das S. A.”): Art. 287. Prescreve: II – em 3 (três) anos: b) a ação contra os fundadores, acionistas, administradores, liquidantes, fiscais ou sociedade de comando, para deles haver reparação civil por atos culposos ou dolosos, no caso de violação da lei, do estatuto ou da convenção de grupo, contado o prazo: d) a ação contra os administradores ou titulares de partes beneficiárias para restituição das participações no lucro recebidas de má-fé, contado o prazo da data da publicação da ata da assembléia-geral ordinária do exercício em que as participações tenham sido pagas;

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