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Enquanto escrevo este artigo, no início de setembro de 2010, uma interessante transação de aquisição está recebendo muita atenção da imprensa de negócios dos Estados Unidos. Em 2 de setembro de 2010, o Burger King anunciou o fechamento do capital – pela segunda vez em oito anos – em uma transação de US$ 4 bilhões; o preço, de US$ 24 por ação, representou um prêmio de 46% e um múltiplo de Ebitda de 8-9X. O novo dono será a 3G Capital Management, baseada em New York. O que gerou muitos comentários na imprensa norte americana foi o fato de a 3G ser suportada por três conhecidos empreendedores brasileiros, todos bilionários: Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Sicupira. Muitos observadores constataram a significância dessa operação como simbólica da nova capacidade do Brasil para fazer operações globais – Jorge Paulo Lemann, por exemplo, teve um papel crucial na estruturação da gigantesca operação AmBev-Anheuser-Busch, dois anos atrás. Diz-se que a 3G e seus representantes veem o Burger King como uma oportunidade de turnaround, pois a companhia vem lutando com o McDonald’s há vários anos. Parte do racional da operação parece ser a capacidade dos novos donos de internacionalizar a rede: o Burger King tem 93 restaurantes hoje no Brasil, mas planeja abrir 500 novas franqueadas na América Latina nos próximos 5 anos. Ainda, aproveitando a posição de liderança do Brasil na indústria global de carnes, o controle do canal do Burger King representará uma presença global complementar no final da cadeia de consumo.
O que a operação do Burger King ilustra de forma mais ampla é a enorme mudança que está ocorrendo no cenário de M&A global. Enquanto o fluxo de Investimento Estrangeiro Direto (IED) – do qual as operações de M&A são um componente-chave – se recupera depois do impacto devastador da crise financeira mundial, as economias em desenvolvimento e em transição lideram a recuperação dos investimentos, absorvendo metade dos fluxos de IED globais em 2009. O peso relativo das economias em desenvolvimento e em transição deverá crescer, tanto como fonte quanto como destino, de acordo com o relatório World Investment Report 2010, da Unctad. O investimento saindo das nações do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) atingiu 9% das saídas em 2008, comparados a menos de 1% dez anos antes. No período 2000-2009, compradores baseados nos Bric fecharam por volta de 1900 operações no exterior – 812 operações por empresas indianas, 450 por chinesas, 436 por russas e 190 por brasileiras. Entre as top 100 corporações transnacionais (CTNs), as de países em desenvolvimento ou transição ocupam sete posições; das 82 mil CTNs consideradas pela Unctad em 2008, 28% tinham matrizes baseadas em países em desenvolvimento e em transição. Há evidências sugerindo que muitas dessas CTNs estão empenhadas em estratégias de crescimento estrutural fora do país. Por exemplo, a lista de 2009 dos 100 novos competidores globais do Boston Consulting Group inclui 14 empresas brasileiras.
Por que essa mudança é tão importante? Historicamente, a dominação econômica e a iniciativa corporativa tendiam a fluir em apenas uma direção: das nações desenvolvidas para as nações em desenvolvimento. Para as empresas baseadas na Tríade (América do Norte, Europa e Japão), as nações em desenvolvimento significavam mercados secundários e fontes de matéria-prima. Em termos de M&A, o mundo era unipolar, com o cenário de transações além-fronteira definido por um polo único: Tríade-para-Outros. Hoje, estamos testemunhando o amanhecer de um cenário de transações multipolar: enquanto as companhias da Tríade ainda são dominantes, operações externas das companhias não Tríade estão se tornando mais frequentes, maiores e potencialmente rompedoras da ordem estabelecida. Operações externas das nações do Bric estão se estendendo em diversas direções: para os mercados da Tríade, para outros mercados em desenvolvimento e para novas fronteiras, como a África. Diversos fatores impulsionam essas operações de M&A para o exterior. Do ponto de vista econômico, o rápido crescimento econômico doméstico, os preços altos das commodities e a liberalização global do IED permitiram às companhias líderes desses países acumular grandes reservas de caixa. Do ponto de vista corporativo, as novas companhias globais desenvolveram significativa capacidade gerencial nos últimos anos. Enquanto consolidam suas posições de liderança nos mercados domésticos, essas capacidades gerenciais se tornam as chamadas “capacidades gerenciais em excesso” em busca de novas pastagens; em outras palavras, capacidade cria a ambição.
Enquanto os dois fatores acima, econômico e corporativo, são importantes, também o contexto geoeconômico mais amplo nos ajuda a entender a vantagem específica que os compradores baseados nos Bric provavelmente terão daqui para a frente. A emergência dos países em desenvolvimento e em transição é um verdadeiro Ponto de Inflexão Estratégico na história moderna, e seu principal direcionador é a entrada de uma enorme porção da humanidade para o setor formal da economia mundial. Com três quartos da população mundial ansiosa para entrar na economia organizada, estamos testemunhando uma mudança fundamental nos negócios mundiais. Três forças se originam desse movimento tectônico: (1) um boom de consumo; (2) urbanização; e (3) escassez de recursos. Quando o PIB aumenta nas economias em desenvolvimento e em transição, mais e mais cidadãos se beneficiam de crescentes padrões de vida. Quando a receita familiar atinge US$ 5 mil por ano, por exemplo, as famílias em todo o mundo aspiram a comprar um carro. A segunda força, urbanização, pode ser ilustrada pelo fato de que, enquanto a Europa tem apenas 35 cidades com população de um milhão de habitantes ou mais, a China terá 221 cidades desse tamanho em 2030. A escassez de recursos já é evidente nos preços e estrutura de mercado de matérias-primas críticas, como minério de ferro e minerais raros. Essas forças começaram a representar um conjunto de Grandes Desafios à humanidade, em cinco áreas críticas para a qualidade de vida e para a própria vida: (1) segurança alimentar e de água; (2) saúde e saneamento; (3) segurança energética; (4) transportes; e (5) habitação. As implicações de negócio desses Desafios se tornam evidentes se considerarmos os investimentos ao redor do mundo sendo feitos em tecnologias para água, fontes alternativas de energia e outras. Como um exemplo das implicações em M&A desses Grandes Desafios, considere a oferta hostil de US$ 39 bilhões da mineradora australiana BHP para adquirir a companhia canadense Potash Corp. A Potash é especialista em minerar rochas potash, que são um fertilizante usado para oxigenar o solo e aumentar a produtividade das colheitas. O crescimento da população mundial e o aumento dos padrões de vida ao redor do mundo implicam em um contínuo crescimento da demanda por alimentos, daí a maior demanda por fertilizantes; desenvolver novas minas de potash é caro e consome muito tempo, e há uma quantidade limitada de potash no planeta. Assim, a oferta da BHP é vista como uma manobra de consolidação incentivada pela crescente demanda por alimentos. Dada a compreensível sensibilidade nacional por questões de segurança alimentar, há muitos rumores sobre possíveis contraofertas motivadas por considerações de poder de negociação, principalmente pela chinesa Sinochem. Ainda, estamos diante de um conjunto de Desafios Transversais, representando domínios que influenciam nossa habilidade de lidar com cada um dos Grandes Desafios: (1) segurança da humanidade; (2) segurança ambiental; (3) educação; (4) infraestrutura – incluindo comunicação; e (5) eco-eficiência. Apresentarei um único, mas convincente, exemplo: desafios contínuos de segurança da humanidade ao redor do mundo estimularam significativos investimentos privados em uma larga gama de soluções de segurança, incluindo firmas privadas de segurança e subcontratados militares, levando à criação de uma indústria totalmente nova, autodenominada “indústria de soluções de estabilidade”. Embora o conjunto de desafios acima seja realmente global – afinal de contas, vivemos em um pequeno planeta –, as soluções estão centradas no mundo em desenvolvimento e, assim, as empresas do Bric têm uma vantagem local no desenvolvimento e implementação de soluções apropriadas – e criadoras de valor no final. Por exemplo, considere a história brasileira de inovação na área de flex-fuel, impelida por seu conjunto único de desafios e oportunidades em energia. Por essa perspectiva, fica claro que os direcionadores fundamentais do crescimento mundial futuro estão alinhados com as vantagens locais das empresas globais baseadas nos Bric. Assim, empresas dinâmicas e bem gerenciadas baseadas nas nações do Bric continuarão a se beneficiar de grandes oportunidades de crescimento global. Isso não significa que todas as transações externas serão alvos fáceis: M&A além-fronteira constitui um difícil desafio gerencial, e muitos dos alvos na Tríade até o momento foram situações de turnaround – como no exemplo do Burger King ou dos complicados ativos do setor automotivo adquiridos nos últimos anos por compradores indianos e chineses.
Na travessia desses domínios de Desafios, as próximas décadas serão um período de “destruição criativa” schumpeteriana, no qual devemos esperar ver muitas experiências de empreendedores, firmas, consumidores e governos, que se engajarão em uma busca vigorosa de modelos apropriados para a nova realidade. A ativa busca por novos modelos de crescimento vai gerar uma significativa agitação empreendedora e oportunidades para novas formas de criação de valor, enquanto as novas indústrias emergem e as indústrias estabelecidas se reestruturam.
Eu acredito que três Direcionadores do Sucesso determinarão o quanto as empresas e investidores do mundo conseguirão se relacionar com os dois conjuntos de desafios: (1) complexidade gerencial; (2) inovação recombinante; e (3) networks de ação e conhecimento. Em um contexto de negócios globais interdependentes e complexos, a inovação e a vantagem competitiva virão de ideias e recursos recombinantes por meio de aquisições e redes de alianças. É por isso que as habilidades de M&A continuarão a ser um direcionador crítico da vantagem competitiva, tanto corporativa como pessoal, em um futuro multipolar.