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MACROECONOMIA
Por Octavio de Barros, economista-chefe do Bradesco.
Por tudo que já escrevi nesta minha coluna, meus leitores regulares aqui do IBEF podem imaginar como estou satisfeito por ter defendido e apostado que o ciclo de aperto monetário iria terminar. Contra a corrente majoritária, minha leitura era a de que o cenário doméstico estava – e ainda está caminhando – para algo muito preocupante que pode culminar em um processo relativamente longo de depressão econômica, com sequelas ainda mais graves quanto ao desemprego.
Defendi que a efetiva ancoragem de expectativas de inflação virá da própria brutalidade da crise econômica. Ainda defendo que, a despeito da rigidez à baixa da inflação, por conta de o Brasil ser o mais indexado país do mundo com estruturas oligopolísticas ainda muito presentes, a inflação seguirá gradualmente sua convergência para o centro da meta em um prazo mais dilatado.
Como todos sabem, sempre fui contrário ao critério do ano calendário no processo de decisão do Banco Central. Afinal, o Brasil é o único país do mundo sob regime de metas a adotar esse critério.
Com o fim do represamento dos preços administrados, a maior depreciação cambial do mundo em 2015 e pressões climáticas afetando preços de alimentos, seria ingenuidade acreditar que a inflação seria menor do que foi em 2015. Uma queda para um patamar abaixo de 7% em 2016 já me parece uma grande vitória e não me parece desafiador apostar em 5,5% ou menos em 2017.
Estamos diante de uma crise global de natureza totalmente diversa daquelas últimas crises precedentes
Fazer melhor do que isso, em um ambiente já depressivo, e com problemas fiscais complexos a se resolver, exigiria um sacrifício injustificável que nenhum banqueiro central no mundo sancionaria. Serenidade e bom senso devem governar as decisões de política monetária nesse momento. A decisão de interromper o ciclo de aperto foi a adequada até que o efeito do hiato negativo do PIB se faça sentir na inflação.
Entendo que toda a discussão quanto à credibilidade do Banco Central do Brasil está sendo confundida com um problema de comunicação, e com a geração de ruídos que poderiam ter sido evitados, haja vista o episódio da nota do Bacen sobre as previsões do FMI. A despeito disso, a decisão do Banco Central foi bastante correta diante de um agravamento notável do cenário doméstico desde o início de dezembro, e, sobretudo, do cenário internacional tremendamente deteriorado.
Estamos diante de uma crise global de natureza totalmente diversa daquelas últimas crises precedentes. Não discordaria de quem defenda a ideia de que a crise atual é, em certa medida, um rescaldo ou corolário das crises anteriores. Mas a presente crise mundial é muito decentralizada e não decorre de fatores tão específicos e localizados. Há muitas frentes de problemas que dialogam entre si em alguma medida, mas que são relativamente independentes umas das outras.
A crise atual tem o epicentro nas muitas dificuldades enfrentadas pela economia chinesa, em transição de regime de crescimento e com fuga importante de capitais. Mas também é uma crise de descoordenação do cartel do petróleo, levando a uma significativa sobreoferta do produto no mundo com o retorno mais agressivo do Irã ao mercado.
Lidar com deflação sempre foi muito mais desafiador para bancos centrais do que reduzir a inflação, quando todo mundo sabe bem o que fazer
É igualmente uma crise da indústria mundial, que atinge patamares inéditos de ociosidade (vide siderurgia global, automobilística etc.) em todos os países do mundo.
Não deixa de ser uma crise geopolítica da maior importância com tensões que se exacerbam no Oriente Médio e se explicitam no agravamento do terrorismo.
É uma crise que se manifesta em taxas nominais de juros de longo prazo negativas em vários países, e de forte expansão dos balanços dos bancos centrais dos países maduros sem qualquer impacto sobre a inflação.
Muito pelo contrário, essa é, inequivocamente, uma crise deflacionária que está obrigando esses bancos centrais a promoverem afrouxamentos quantitativos e taxas de juros próximas de zero. O caso do Japão é emblemático: taxas de juros de 10 anos negativas, expansão do balanço do Banco do Japão em 40% e inflação ainda negativa e o iene se valorizando.
Mesmo o FED, banco central americano, reluta em prosseguir a normalização monetária no mesmo ritmo que havia sugerido ao mercado em dezembro.
Na verdade, lidar com deflação sempre foi muito mais desafiador para bancos centrais do que reduzir a inflação, quando todo mundo sabe bem o que fazer. O cenário é tão confuso que a precificação de ativos está muito dificultada em todo mundo.
Por seu turno, a economia dos Estados Unidos está sendo progressivamente afetada pelo ambiente global e não teria a menor capacidade de exercer qualquer papel de locomotiva global. Muito pelo contrário, prevemos uma sequência de revisões para baixo do crescimento dos EUA (abaixo de 2% em 2016). As exportações americanas despencam (efeito dólar forte e fraca demanda mundial). A produção industrial já está em terreno negativo de crescimento, os estoques seguem crescendo e os modelos indicam que a possibilidade de recessão, ainda que pequena, vem aumentando sistematicamente e já se aproxima de 20%. Os títulos de 10 anos do Tesouro americano mergulham a patamares muito baixos. Nem mesmo o barateamento do preço do petróleo e das matérias-primas tem sido capaz de impulsionar as economias desenvolvidas.
Podemos dizer claramente que a crise atual é uma crise dos países emergentes no seu conjunto
A crise de 2008 foi derivada inicialmente de problemas ligados ao sistema financeiro americano (crise do subprime). Mais adiante, a crise europeia de 2011 exacerbou o grave problema do endividamento soberano de muitos países que levou a operações ousadas de resgate graças à atuação do BCE. A crise atual, ao contrário das precedentes, não é uma crise de excesso de alavancagem.
Não há indicações de que os bancos estejam fragilizados como antes, ainda que, na medida em que os indicadores de geração líquida de caixa (Ebitda) despencam, pioram automaticamente todos os indicadores de endividamento corporativo.
Neste momento, há de fato uma deterioração dos indicadores de endividamento das empresas petrolíferas e de outros setores ligados a commodities. A situação corporativa global, de fato, não é das melhores. O preço deprimido das ações dos bancos comerciais ao redor do mundo traduzem essa deterioração.
Mas é possível, por enquanto, afirmar que não estamos diante de uma crise sistêmica bancária ou de endividamento muito excessivo como no passado recente. Até porque os indicadores de liquidez em caixa de empresas ainda se mantêm bastante expressivos. Há, é claro, algumas exceções de setores particularmente fragilizados, mas longe de ser algo generalizável. Mas a evolução desse processo deve ser monitorada com muita atenção porque o cenário pode piorar.
Tampouco essa parece ser uma crise que já se manifesta no desemprego acelerando. O desemprego deverá aumentar com o atual ambiente deflacionário global e com o avanço das inovações disruptivas altamente poupadoras de mão de obra, mas a taxa de desemprego nas nações maduras ainda está desacelerando moderadamente.
A desaceleração dos emergentes reforça a leitura de que o PIB potencial global é bem menor atualmente
Podemos dizer, claramente, que a crise atual é uma crise dos países emergentes no seu conjunto, em que pesem algumas raras exceções como a Índia. Faz muito poucos anos que os países emergentes respondiam por três quartos do crescimento mundial e sustentaram as altas taxas de crescimento global.
Agora, os emergentes, capitaneados pela China e afetados pela brutal queda do preço das matérias-primas desaceleram muito suas taxas de crescimento. Suas moedas se depreciaram de forma pronunciada, particularmente a moeda chinesa, jogando pressão adicional na deflação mundial com o yuan perdendo valor com a fuga de capitais na China (perda de US$ 700 bilhões em pouco mais de seis meses) e com as incertezas relativas à sua capacidade de lidar com uma forte mudança no seu regime de crescimento.
A China transita do mercado externo para o mercado doméstico, do investimento para o consumo interno e da indústria para os serviços. Tudo isso ao mesmo tempo, em um processo que gera muitas incertezas e retira dela o papel de locomotiva da economia mundial. A China perde competitividade manufatureira. A depreciação do yuan tenta mitigar o impacto disso sobre o seu crescimento, que estimamos que seja da ordem de 5,5% em 2016.
Portanto, em um ambiente onde as nações maduras experimentam um processo de estagnação, com a falta de vetores para o crescimento, a perda de dinamismo da China e dos emergentes produtores de commodities agravam o cenário global. A desaceleração dos emergentes reforça a leitura de que o PIB potencial global é bem menor atualmente. Os supostos avanços da produtividade decorrentes das inovações estão muito longe de se materializarem como drivers de crescimento.
Não bastasse isso, o comércio mundial cresce muito abaixo do PIB mundial pela primeira vez em 30 anos. Assim, países como o Brasil, que esperam uma retomada das exportações depois de uma fortíssima depreciação cambial, não podem contar com esse estímulo. Em outras palavras, o mundo circunstancialmente conspira contra países emergentes, tendo eles praticado ou não politicas econômicas equivocadas nos últimos anos.
O país precisa de uma mudança ousada de atitude em relação a temas que possam nos recolocar no jogo mesmo em condições adversas
Entendo que esse ambiente descrito é revelador da dramaticidade do desafio brasileiro que é incomparavelmente maior do que o de países que não foram objeto de equívocos de política econômica nos anos recentes. Não nos cabe perseguir uma sonhada volta à normalidade econômica que dificilmente será alcançada por razões meramente cíclicas. O que aprendemos com a análise da crise global atual é que ela será duradoura e jogará contra os países emergentes produtores de matérias-primas por um bom período de tempo.
Ou seja, não cabem ilusões nesta fase. Não nos é dado o direito de não sermos radicais em termos de mudanças na governança econômica brasileira. Não cabem resistências ideológicas fora de lugar quando o que está em jogo é algo bastante grave apontando para uma crise de proporções ainda maiores do que o que já estamos assistindo.
O país precisa de um conjunto de ações radicais, uma efetiva mudança ousada de atitude em relação a alguns temas que possam nos recolocar no jogo mesmo em condições adversas. Entendo que é necessária uma ampla compreensão de que todos os atores econômicos e políticos devam dar um passo adiante, mesmo sabendo que ele possa ter efeitos relativamente limitados. Mas esse passo precisa ser dado.
Não é ocioso insistir que me refiro a medidas fiscais de médio e longo prazo que realmente importam nesse momento, como a reforma da previdência (até mesmo para preservar o regime de proteção social existente), teto rígido para o crescimento do gasto público, solução financeira urgente para a Petrobrás (várias alternativas em estudo), abertura unilateral da economia com celebração do maior número possível de acordos bilateriais e o desenvolvimento de uma efetiva agenda de desindexação da economia.
Caso não haja esse senso de urgência que impõe uma certa pacificação política em torno de uma agenda mínima de ação, passaremos a considerar nova queda importante de PIB em 2017.