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As tesourarias podem ser fortalecidas pelas crises?

O colapso do Lehman Brothers – o segundo maior banco de investimentos dos Estados Unidos –, em 15 de setembro de 2008, provocou instabilidade nas bolsas do mundo inteiro e foi o estopim que deflagrou uma acentuada e rápida desvalorização das moedas de países emergentes como Brasil, México e Chile. No Brasil, essa maxidesvalorização foi a causa de perdas financeiras, inclusive em várias empresas conhecidas pela robustez de suas governanças e pela expertise na atuação no mercado financeiro. A excessiva exposição à volatilidade do dólar, contratada por meio de derivativos cambiais cujo propósito era exatamente o de trazer proteção, fez com que algumas delas amargassem perdas bilionárias que comprometeram sua continuidade. Até mesmo empresas de menor porte que não possuíam descasamentos de moedas, seduzidas pela possibilidade de redução de seus custos de captação, contrataram operações indexadas à variação cambial, na certeza de que a real seguiria sua trajetória de valorização, sem compreender completamente o risco ao qual estavam se expondo.

Afinal, as perdas foram provocadas pela assunção consciente de posições especulativas? Ou por falta de preparo dos profissionais de tesouraria? A resposta a essas perguntas não é direta nem simples; muitas foram as dúvidas também levantadas quanto à efetividade das práticas de gestão de riscos financeiros e de outros mecanismos de controle, ou quanto à utilização de derivativos complexos para a implementação de estratégias de hedge.
Entretanto, em meio às dúvidas, há uma certeza: se as boas práticas de gerenciamento de riscos tivessem sido aplicadas, os efeitos da crise de 2008 não teriam sido tão danosos, pois todos os mecanismos necessários a uma gestão robusta já estavam disponíveis antes desta, e antes das anteriores, que foram tantas. Não há evidências de que as práticas foram insuficientes, mas sobram pistas de que foram mal aplicadas.

O mais provável é que várias causas (prosaicas até), combinadas com a súbita desvalorização do real, tenham acarretado essas perdas. Em alguns casos, não havia políticas financeiras formalizadas, ou, quando essas existiam, mesmo que conceitualmente consistentes, eram descoladas da realidade das companhias, que não dispunham de instrumentos adequados para verificar se estavam efetivamente sendo seguidas. Em outras situações, inexistiam regras para operação com novos produtos financeiros, que em muitos casos foram contratados sem uma adequada avaliação corporativa que considerasse a opinião independente de diferentes competências, tais como risk management e jurídico. Outra deficiência flagrante foi o monitoramento inapropriado de operações sensíveis às oscilações do mercado, como os target forwards; instrumentos de gestão de riscos financeiros consagrados, como o mark to market, monitoramento de limites e stress testing, por exemplo, não foram utilizados, ou o foram mas com precisão e periodicidade inadequada. Mas talvez a mais gritante falha tenha sido a leniência com que a boa e velha segregação de funções foi tratada. Atividades conflitantes sendo executadas sob a responsabilidade de um só executivo – tais como definição de estratégia de hedge, contratação das operações, valorização dos contratos, monitoramento da carteira e, principalmente, preparação de informações gerenciais para os comitês de finanças e riscos – possibilitaram a implementação de estratégias financeiras aderentes à percepção de risco do tesoureiro e não da companhia.

Qual é o propósito de ainda se discutir a crise financeira de 2008? Se o entendimento dos erros do passado não é uma garantia de que não haverá erros no futuro, ele traz ao menos o conforto de que apenas “novos” erros serão cometidos, não mais os “velhos”. A compreensão das falhas ocorridas na gestão de riscos é fundamental para que as perdas não se repitam, porque outras crises financeiras virão, por outras causas e razões, mas com efeitos semelhantes (não estamos agora experimentando a instabilidade dos mercados deflagrada pela crise da dívida grega?). A crise financeira de 2008 constituiu-se em um teste severo para as tesourarias, entretanto trouxe a gestão financeira para o primeiro plano na agenda do conselho de administração e da diretoria executiva das companhias, constituindo-se em excelente oportunidade para evidenciar a influência das decisões tomadas nesse ambiente sobre os negócios.

Para entender um pouco mais a fundo essa crise, a PwC está concluindo uma pesquisa com CFOs, tesoureiros e risk managers de 330 empresas em 26 países, dentre os quais o Brasil, com o objetivo de reunir opiniões a respeito: i) da performance dos profissionais da área financeira e das práticas gerenciais correntes; ii) dos desafios a serem enfrentados; e iii) dos direcionadores que moldarão a evolução das boas práticas ao longo dos próximos três a cinco anos. Essa pesquisa será em breve compartilhada na íntegra com os colegas do IBEF, mas podemos antecipar algumas de suas constatações e conclusões.

Os entrevistados constataram que as boas práticas de gestão financeira e de riscos financeiros se provaram consistentes quando efetivamente implementadas, particularmente aquelas que tratam da gestão de liquidez (diversificação das alternativas de funding, cash flow forecasting e gestão de working capital), do relacionamento bancário, da gestão de riscos de contraparte e da gestão de riscos de mercado (commodities e câmbio, em particular). As pressões sobre as tesourarias decorrentes da crescente complexidade dos instrumentos financeiros, da volatilidade dos mercados e da necessidade de respostas ágeis são cada vez maiores. Em contrapartida, o orçamento de investimento dessas áreas não se expande na mesma proporção, abrindo um perigoso gap entre as competências necessárias e aquelas efetivamente postas à disposição de tesoureiros e risk managers.
Não se crê possível que as boas práticas sejam plenamente aplicáveis em um ambiente onde os investimentos são tão restritos. Poucas tesourarias dispõem de quadros considerados quantitativamente suficientes, e, dessas, poucas investem em controles compensatórios para contornar as exposições decorrentes da execução de tarefas conflitantes por um mesmo profissional. A grande maioria se encontra em uma situação de baixo nível de automação, com a utilização extensiva de planilhas eletrônicas. A estrutura de relatórios e informações gerenciais é, na maioria dos casos, hermética, dando pouca visibilidade das posições financeiras para executivos de outras áreas, e não prima pela independência de suas fontes. Um substrato das conclusões dos entrevistados pode ser destacado nos tópicos abaixo:

• a crise financeira foi, claramente, um grande desafio para as tesourarias, mas também abriu novas oportunidades. 80% dos participantes acreditam que ganharam a atenção da diretoria e mais de 60% reforçaram a percepção de que a gestão de riscos financeiros agrega valor às companhias;

• ficou demonstrado que o desenvolvimento de alternativas de funding, gestão de liquidez e risco de contraparte são fatores críticos que devem ser cuidadosamente tratados;

• as práticas de gestão de riscos financeiros se provam eficientes, mas poucas tesourarias dispõem de recursos suficientes para aplicá-las;

• as consequências de head count insuficiente e baixo volume de investimento em tecnologia e ferramentas podem ser devastadoras. Tanto os conselhos de administração quanto a diretoria executiva concluíram que esse é um risco que não se pode mais assumir;

• tesoureiros entrevistados têm uma visão clara de onde se pode adicionar mais valor no futuro: dar robustez às práticas de gestão de riscos, melhorar a gestão de fluxo de caixa, otimizar o capital de giro e investir em ferramentas e tecnologia para apoiar essas atividades.

Como a pesquisa da PwC confirma, tesoureiros enfrentaram enormes desafios decorrentes da crise financeira de 2008. Entretanto, a maior parte das ações necessárias para salvaguardar as companhias de riscos e perdas são aquelas já previstas nas boas práticas conhecidas, e não técnicas ou modelos inovadores. Se assim o é, por que essas ações não estavam implantadas? A tônica do momento é avaliar a suficiência de recursos humanos e tecnológicos, postos à disposição de tesoureiros e risk managers; a tônica do momento é implantar efetivamente as melhores práticas de gestão de riscos financeiros, enquanto a lembrança das perdas, de pressões de liquidez e da instabilidade do mercado ainda está na memória dos investidores, órgãos reguladores, acionistas, credores, conselho de administração e CEOs.

Em resumo, até quando será possível tomar o risco de atuar em um mercado volátil e complexo sem ter à disposição ferramentas adequadas? Até quando será possível postergar investimentos que são fundamentais para se usufruir plenamente dos benefícios propiciados por práticas já consagradas, mas inapropriadamente implantadas? Talvez essas questões sejam respondidas pela próxima crise.

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