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Um novo sistema “sinocêntrico” está largando na frente
Marcos Troyjo é diretor do BRICLab da Universidade Columbia
Quando o Muro de Berlim caiu, Brasil e China ocupavam fatias iguais do PIB global – cada uma representava 3% da economia mundial. Hoje, a participação brasileira permanece essencialmente a mesma, ao passo que a China já responde por quase 17% da riqueza global. A dramática ascensão chinesa é mais destoante quando comparada à imobilidade brasileira. Contudo, embora inerte, o Brasil de 2015 ainda é a segunda maior economia emergente.
Essa corrida chinesa rumo ao status de superpotência econômica se deveu sobretudo ao extraordinário sucesso na aplicação de uma estratégia de nação comerciante. Isso gerou perceptível desproporção da presença chinesa em diferentes âmbitos das relações econômicas internacionais. O gigantismo comercial da China, que há dois anos converteu-se na maior exportadora – e importadora – do mundo, não se fez acompanhar do papel do país como grande fonte de investimentos estrangeiros diretos. Isso, porém, está mudando.
Comparar os perfis dos membros do “G2” (EUA e China) do mundo contemporâneo ilustra o ponto. A corrente de comércio exterior anual da China, hoje, é de US$ 4 trilhões. A dos EUA é de US$ 3,9 trilhões. Já o estoque total de investimento no exterior demonstra grande disparidade. Na ponta receptora, a China ultrapassou os EUA em 2014 como principal destino mundial de investimento estrangeiro (China US$ 127 bilhões, EUA US$ 86 bilhões). Na ponta emissora, a desproporção é brutal: os EUA contabilizam US$ 6,5 trilhões e a China menos de 10% disso, com US$ 614 bilhões.
Ainda assim, a tendência é de maior convergência. Nos últimos dez anos, os EUA elevaram seu estoque de investimentos não financeiros no exterior em “apenas” 75%, enquanto a China os multiplicou 12 vezes. Será então, como questiona o economista Peter Nolan, da Universidade de Cambridge, que a “China está comprando o mundo”?
A China sabe que seu perfil como investidora gera preocupações no exterior
A China, à semelhança do Japão nos anos 80, realiza crescentes aquisições de empresas e imóveis no exterior. Investe pesadamente em energia e, onde lhe permitem, em terra, subsolo, agricultura. E o faz globalmente. Se os investimentos chineses são particularmente visíveis na África, em volume, os principais destinos na última década são EUA, Austrália, Canadá e Brasil.
A China sabe que seu perfil cada vez mais alto como investidora no exterior gera agudas preocupações. O empresariado local teme competição e desindustrialização. Governos sensibilizam-se com eventual perda de soberania sobre recursos naturais. Trabalhadores ressentem-se do estilo supostamente abrasivo com que os chineses administram as suas empresas.
Mas os astutos chineses já encontraram fórmula sutil de explicar como a expansão de seu papel investidor representa oportunidades para o mundo em desenvolvimento. Classificam plataformas plurilaterais lideradas por Pequim como o Banco dos Brics, o Banco de Investimentos em Estrutura na Ásia ou o Fundo da Rota da Seda, juntamente com o investimento estatal e privado no exterior, como equivalentes a um “Plano Marshall chinês”.
Tal hiperatividade chinesa no campo dos investimentos produz mudanças nas camadas tectônicas. Na incerta seara das relações internacionais – onde alianças e rupturas movem-se ao sabor da ocasião -, uma parceria, por exemplo, tem se mostrado sólida nos últimos 70 anos: o “Relacionamento Especial” entre os EUA e o Reino Unido. Fundada em herança civilizacional comum, e forjada a fogo na Segunda Guerra, tal associação atravessou conjunturas delicadas.
A relação entre americanos e britânicos submete-se a um teste de estresse. A tensão vem da Ásia
No conflito das Malvinas, Washington ladeou-se com Londres apesar da existência do Tiar (Tratado Interamericano de Ajuda Recíproca). A julgar pela letra de tal acordo, os EUA deveriam apoiar a Argentina. Na 2ª Guerra do Golfo, e em nome da parceria transatlântica, Blair sacrificou popularidade e prestígio multilateral para se juntar à coalizão de Bush filho. Mesmo Churchill nunca disfarçou predileção por gerir o mundo a partir de um condomínio anglo-americano – em vez de se embaraçar na complexa costura de governança com a Europa continental.
No presente ano, contudo, a relação entre americanos e britânicos submete-se a um teste de estresse. A tensão vem da Ásia. Na contramão dos interesses geoestratégicos de Washington, Londres decidiu juntar-se ao Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB na sigla em inglês). A iniciativa, de origem chinesa, é uma das principais cartadas de Pequim na ampliação de sua influência sobre o continente asiático.
A China enxerga Banco Mundial e FMI como anacrônicos, fósseis de uma realidade de poder dos anos 1940. A burocracia das instituições de Bretton Woods na liberação de fundos torna essas agências inoperantes. Nenhuma tem foco e musculatura para saldar fração dos US$ 8 trilhões necessários ao fortalecimento da infraestrutura na Ásia. E mesmo o Banco Asiático de Desenvolvimento (ADB), fundado nos anos 60 e dominado por Japão e EUA, concentra atenção no alívio da pobreza, não no provimento de infraestrutura física para o crescimento econômico.
Vinte e uma nações da Ásia-Pacífico já aderiram ao AIIB, mas foi a predisposição britânica em se associar ao banco de liderança chinesa que gerou efeitos colaterais em diferentes quadrantes. Apesar da aliança de que desfrutam com os EUA, Coreia do Sul e Austrália – até há pouco reticentes em se associar ao novo banco – estão reconsiderando suas posições. Hoje as exportações de ambos os países à China são bastante superiores aos fluxos comerciais que mantêm com os EUA.
Além do AIIB, a China sediará o Banco dos Brics e outras agências de financiamento
Geralmente laudatória de sua parceria com Londres, a diplomacia americana acusou o golpe. O governo dos EUA abre baterias contra os britânicos, tachando-os de “muito condescendentes” com arbitrariedades de Pequim em termos econômicos ou de direitos humanos.
Mostrar-se contrário à adesão do mais tradicional aliado a uma iniciativa chinesa de tamanho impacto só faz colocar Washington em posição ainda mais constrangedora. Alemanha, França e Itália anunciaram em março de 2015 que também serão sócias do banco. Além do AIIB, a China também sediará o Banco dos Brics e várias outras agências de financiamento.
Nessa corrida por influência na Ásia ou na montagem de robustas fontes de recursos para investir e financiar o desenvolvimento, uma coisa é certa: o novo sistema econômico “sinocêntrico” está claramente largando na frente.