Com propostas polêmicas, como dolarizar a economia argentina e fechar o banco central do país, além de planos emergenciais para alcançar o déficit zero, desregulamentar a economia e reduzir a inflação, Javier Milei tomou posse em dezembro de 2023 como presidente da Argentina. De outsider a presidente eleito, ele assumiu em meio a um cenário de descontrole dos gastos públicos e uma inflação recorde de 211% ao ano.
Para ajudar executivos de finanças do Brasil a entender o contexto macroeconômico, os planos deste novo governo, os desafios estruturais e as perspectivas para o país vizinho, a Comissão Técnica de Tesouraria e Riscos do IBEF-SP promoveu no dia 19 de março o painel “Navigating Argentina’s Economic Terrain: strategies for currency risk management under new administration”.
O evento foi realizado no Hotel Tivoli Mofarrej, em São Paulo, e contou com o apoio do Banco BBVA, que trouxe para o debate o seu economista-chefe, Marcos Dal Bianco, e a diretora de vendas corporativas e institucionais, Delfina María Nallim. O moderador foi Bruno Nespoli Damasceno, líder da CT de Tesouraria e Riscos do IBEF-SP e líder de tesouraria para América Latina da Corteva Agriscience.
“Grandes nomes, grandes diretores e executivos estão aqui para discutir sobre a Argentina. Então, muito obrigado a todos que fizeram este evento acontecer e um agradecimento especial a toda equipe do BBVA, por esta oportunidade de falar sobre a Argentina”, afirmou Bruno.
A head de corporate and investment banking do BBVA no Brasil, Maria Agustina Ramirez, agradeceu o convite e destacou a intenção da instituição em reforçar sua presença em nosso país. “Somos o banco número um no México, com cerca de 28% de participação de mercado. Somos o segundo banco do Peru, o terceiro maior da Colômbia e o maior banco da Argentina. E claro, como podemos ser um banco latino-americano e não ter uma presença significativa no Brasil? E isso é algo que pretendemos consertar nos próximos anos. Vamos construir um banco de investimento corporativo aqui localmente, com capacidades de produtos locais para melhor atender às necessidades dos clientes corporativos e institucionais”, destacou a executiva.
A estrutura da crise e o histórico de instabilidade econômica
O economista-chefe do BBVA, Marcos Dal Bianco, abriu o painel relembrando todos os elementos que levaram a Argentina à sua maior crise em décadas, com cenário de hiperinflação, descontrole das contas públicas e ruptura com os partidos tradicionais, levando à ascensão de Javier Milei. O economista apresentou um gráfico ilustrando déficits fiscais no país nos últimos dez anos, apontando essa como a principal causa dos problemas econômicos.
“São os últimos dez anos. Mas, se eu colocar este gráfico nos últimos 40 anos, você terá déficit fiscal em quase todos os anos. O governo gastou muito dinheiro e como a sua receita não é suficiente para pagar as contas, o governo pediu ao banco central que imprimisse dinheiro para o Tesouro”, afirmou o economista, mostrando o crescimento das emissões de moeda nos últimos anos e o impacto na inflação.
Dal Bianco ressaltou o plano do novo presidente argentino para levar o déficit total a zero em 2024, incluindo tanto o resultado primário quanto o pagamento de juros. Mais do que atingir esta meta – que o economista considera muito difícil – ele ressalta que o vital para a Argentina é estabelecer essa “dinâmica” de controle das contas públicas.
“Acreditamos, no BBVA, que Milei não vai entregar esse déficit zero. Mas, mesmo falhando nisso, ele fará a maior parte do trabalho. Pensamos que reduzir o déficit total de cerca de 4% do PIB para zero é muito difícil porque temos alguma inércia e alguns problemas sociais, o que impõe limites a este plano. Mas mesmo que ele falhe e entregue algo próximo disso, será um sucesso, porque não é só o número que importa, mas a dinâmica. A nossa previsão é um pequeno déficit primário de 0,8% e um déficit total em torno de 2% do PIB. Um déficit de 2% na Argentina não é um problema porque temos um mercado local que pode financiar isto”, explicou Dal Bianco.
Primeiras medidas
Em meio à “motoserra” – figura de linguagem utilizada por Milei para o intenso corte nos gastos públicos -, diversas medidas foram adotadas de imediato. O presidente suspendeu obras públicas, não renovou contratos estatais, liberou preços antes regulamentados e desvalorizou o peso em mais de 50%, visando combater uma “inflação represada”. O resultado foi uma inflação de 25,5% em dezembro de 2023, que reduziu para 13% em fevereiro de 2024.
“Esta inflação de 211% em dezembro do ano passado estava ocorrendo mesmo com muitas fontes de inflação represada. O governo anterior tentou controlar a inflação de muitas maneiras. Uma delas foi a taxa de câmbio. O último governo incorreu num enorme déficit fiscal e imprimiu muito dinheiro para financiar isso. E é claro que a inflação disparou, mas a disparidade cambial foi enorme. Então houve uma lacuna. Milei entendeu que essa inflação reprimida deveria ser reconhecida e corrigiu o câmbio de 360 para 800 pesos nos primeiros dias de mandato”, afirmou o economista-chefe do BBVA.
Dal Bianco também destacou os preços regulamentados e os subsídios. “Os preços da eletricidade, do gás, da água e dos transportes na Argentina são subsidiados. Digamos que a eletricidade aumente apenas 2% e a inflação seja de 8%, você está represando essa inflação. Milei está tentando corrigir isso, representando a inflação. Se corrigirmos uma fonte de inflação representativa, a inflação aumentará. E isso está acontecendo. Portanto, as primeiras medidas de Milei são inflacionárias e não deflacionárias”, analisou ele, abordando também o corte na taxa de juros realizado no dia 18 de março.
Primeiros resultados
O economista destacou alguns resultados dos primeiros meses de governo, como o superávit financeiro em janeiro e fevereiro de 2024, o que não ocorria desde 2011. “Ele está cumprindo o lado fiscal. O Tesouro hoje em dia na Argentina está devolvendo o peso ao banco central, está recomprando títulos. Parte deste aumento no sistema deveu-se ao fato de o banco central comprar títulos no mercado secundário. Portanto, era uma fonte de financiamento indireto do Tesouro. Mas hoje em dia, na Argentina, o Tesouro está resolvendo este problema. Portanto, é fundamental que ele esteja fazendo isso e seja muito bem-sucedido nisso. A inflação está caindo na Argentina”, comentou Dal Bianco.
Com essas medidas, a previsão do BBVA é de que o governo argentino conseguirá entregar uma inflação mensal de 4% em dezembro, fechando 2024 com uma inflação de 175%. “Será uma inflação de 175%. Mas estamos vindo de uma inflação de 211%. E, novamente, essa inflação de 211% tem muita inflação reprimida aí. Portanto, se conseguir cumprir isso, o governo será um grande sucesso. O principal KPI do governo de Milei é a inflação. Se perguntar para os argentinos qual o maior problema, 75% vão dizer que é a inflação. Portanto, se ele entregar algum progresso neste tema ele terá mais apoio popular para sustentar o seu governo e ter bons resultados nas eleições parlamentares de meio de mandato e conseguir apoio para avançar com as reformas”, destacou.
Derrotas no Congresso
A necessidade de uma maior representação no Congresso retrata o momento atual do governo. O plano de Milei para desregulamentar a economia foi dividido em duas partes, o “decretaço”, que revogava e modificava mais de 300 normas da administração pública no país, e a chamado projeto de lei “Ómnibus”, que era a base de uma reforma liberal no país. As duas medidas sofreram derrotas no Congresso e o projeto de lei foi retirado de votação por falta de apoio. Atualmente, o partido do presidente conta com 37 das 257 cadeiras da Câmara dos Deputados e 8 das 72 no Senado.
“Temos algumas partes do decreto que ainda estão em vigor. Mas a maior parte foi impedida pela justiça. E há boas chances de que isso também seja rejeitado no Congresso. Portanto, há duas partes principais do plano Milei: uma, no curto prazo, que vai bem, a conquista fiscal; e a outra, a agenda de reformas, que está quase parada. Mas dito isso, a parte mais importante do plano Milei é a fiscal”, ressaltou Marcos Dal Bianco, elencando ações que o governo conseguirá realizar mesmo sem grande apoio no Congresso, como remover os controles de capitais, liberar o comércio exterior, reduzir gastos públicos e desregulamentar o setor financeiro.
Blue-chip swap
Delfina María Nallim, diretora de vendas corporativas e institucionais do BBVA, aproveitou o debate sobre o momento do país para apresentar detalhes de um instrumento financeiro criado para garantir liquidez às empresas que operam na Argentina, o blue-chip swap. Este mercado consiste na compra e venda de títulos ou ações que são cotados em pesos e em dólares. A transação cria uma taxa de câmbio implícita, que supera a oficial.
“É como um sintético dado pela compra e venda de títulos argentinos. Pode ser negociado em dólares e pesos. É a cerca viva perfeita, pois você teria ativos em um valor real do dólar e está protegido de qualquer decisão do governo argentino e pode transferir esse dinheiro para um offshore, garantindo liquidez”, afirmou Delfina.
Na transação, as empresas adquirem títulos localmente e envia para fora do país e efetuam a venda em moeda forte. “A empresa tem que ter contas na Argentina, claro, mas também precisa ter uma conta em dólares no exterior para receber títulos. Então, isso é importante. A parte do peso é toda executada localmente. Assim, a empresa local compra títulos por pesos com os pesos represados que você tem na Argentina e transfere os títulos para o exterior. Assim, a perna do dólar é executada no mercado offshore”, explicou a diretora.