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Verbas recebidas de fornecedores – um nó a desatar!

Esse tema – verbas recebidas de fornecedores – nos últimos dias tem sido alvo de atenção, principalmente em razão de estar associado a uma reestruturação em curso no Carrefour. Tenho acompanhado com atenção o que se tem escrito por duas razões: a primeira, porque, nos últimos 20 anos, eu tenho atuado nesse segmento de distribuição, onde iniciei na área Financeira-Operacional do Carrefour como trainee; e a segunda, logicamente, por nutrir respeito e carinho pela empresa – Carrefour – em que iniciei minha carreira. Você poderia ainda se perguntar se o simples fato de trabalhar nesse segmento de distribuição me qualificaria. Creio que, além da experiência nesse segmento, o fato de ter construído minha carreira na área Contábil-Financeira, e, ainda, o fato de hoje não estar atuando como executivo nesse segmento, completam minha qualificação e me concedem a distância necessária para me manifestar.

A concessão, pela indústria, de verbas a varejistas e atacadistas é uma prática comum. Geralmente, essas verbas são concedidas por meio de uma variedade de programas e acordos com vistas a financiar a promoção de produtos, propaganda, suporte no ponto de venda e expansão. Essas verbas são concedidas sob os mais variados títulos associados à sua finalidade: fidelidade/exclusividade (porcentagem sobre as compras por ser fornecedor); aniversário (verba para subsidiar o custo de promoção do aniversário anual); logística (porcentagem sobre as compras pelo varejista assumir a distribuição dos produtos entre suas lojas e o fornecedor entregar em um ponto único); Verba de Publicidade Cooperada (verba destinada a subsidiar propaganda e promoções na mídia); pagamento a fornecedores (B2B, pagamento centralizado e consulta aos sistemas do varejista; trata-se de uma divisão das economias administrativas que o fornecedor obtém por utilizar esse serviço); escala/volume (porcentagem sobre as compras por atingir ou comprar volumes pré-acordados); promotores (verba destinada a pagar o serviço de promotores de mercadorias/repositores); recuperação de margem (verba destinada a recuperar a margem do varejista por este ter vendido o produto por um preço muito inferior, o que afeta sua margem de comercialização objetiva); verba de introdução de produto (verba paga na introdução de um produto; está associada a duas coisas: “ponto” e espaço); aluguel de ponta de gôndola (verba paga para expor o produto no espaço mais nobre e de maior visibilidade em uma loja); enxoval e especiais (pontuais; por transação, muitas vezes envolvendo a compra em volumes maiores de um dado produto).

Para entendermos melhor esse tema, temos que retroceder um pouco no tempo. Até o início dos anos 1990, dada a existência de uma inflação alta e descontrolada, não havia muita sofisticação em termos de verbas e elas não eram tão representativas quanto hoje. De fato, as mais comuns eram VPC, aniversário, ponta de gôndola, enxoval, recuperação de margem e especiais (pontuais). A razão para isso é que, naquela época de inflação alta, o nome do jogo era prazo de pagamento. Grande parte do resultado de uma empresa de varejo, àquela altura, se “fazia” na linha de receita financeira. Claro que os resultados não eram em si financeiros, mas tão somente “margem” resultante da diferença entre o prazo de pagamento e o prazo de rotação dos produtos. Essa foi, sem dúvida, a fase dourada dos hipermercados, um conceito que se adaptou muito bem ao período inflacionário que o Brasil e a América Latina viveram e que hoje, como modelo, se encontra em crise. A indústria de consumo, por sua vez, inicialmente, de um lado “escaldada” pelos vários planos econômicos – que sempre aplicavam “tablitas” (instrumento utilizado para “desinflacionar” os valores faturados) –, e ainda pressionada pela guerra de preço dos grandes varejistas, que buscavam uma maneira de saber os preços praticados a cada um, encontrou, na promoção e difusão das verbas, uma solução para esses problemas.

O segmento de distribuição, no tocante às verbas recebidas de fornecedores, lida com quatro pontos/momentos: (1) formalização do direito; (2) momento do reconhecimento; (3) recebimento; e (4) alocação (em que conta alocar). Esses quatro pontos são importantes e em todos existe risco envolvido.

O primeiro ponto – formalização – é aquele em que as partes, o comprador (varejo/distribuidor/atacado) e a indústria de consumo, formalizam um acordo. O problema aqui é que, dadas situações já existentes no passado envolvendo disputas quanto ao que se cobrou da indústria, os grandes distribuidores desenvolveram procedimentos que trazem proteção, mas que são burocráticos e que demandam inúmeros controles. Os contratos passaram a ser detalhados e longos e necessitam ser firmados por quem tem poder/autoridade. Isso demanda o envolvimento da área Jurídica da indústria, que muitas vezes se recusa a assinar e dá lugar a contratos “especiais” (não padrão), que demandam mais controles paralelos. Adicionalmente, em acordos rápidos e destinados a um evento ou transação específica, a burocracia pode levar a – para que não se perca o negócio – formalizações incompletas, com confirmação apenas por e-mail ou, simplesmente, baseando-se na promessa de que “depois o representante do fornecedor assina”.

O segundo ponto – momento do reconhecimento – é outro grande problema. Reconhece-se a verba com base na data do evento negociado (aniversário) ou serviço prestado (logística) ou com base na data em que os produtos daquele fornecedor forem vendidos? Além disso, existe o desafio de se controlar isso. Afinal, são milhares de fornecedores e milhares de transações.

O terceiro ponto – recebimento –, ao menos nas grandes redes e até com vistas à eficiência financeiro-administrativa e de impostos, se dá por meio de um “encontro de contas”, em que as verbas devidas são deduzidas dos valores/faturas a pagar à indústria de consumo. O problema que isso gera, principalmente para a indústria, é o de reconciliação das contas a receber com o grande varejo/atacado/distribuidor. Ademais, existe uma relação muito grande com o item formalização.

O quarto e último ponto – alocação – pode parecer menor; todavia, não é menos importante, uma vez que, dependendo de onde se aloca a verba, o demonstrativo de resultado da empresa, apesar de não se alterar no tocante ao seu resultado, se altera no tocante à qualidade da informação prestada aos gestores e demais interessados. Explico-me melhor: deve-se alocar a Verba de Publicidade Cooperada como redução de custo das mercadorias vendidas ou, ainda, como redução das despesas de publicidade? A mesma questão vale, entre outras, para as verbas de promotores, B2B ou logística. A adoção de uma ou outra prática não altera em si o resultado; todavia, pode influir na sua análise e interpretação.

Muito provavelmente, no caso do Carrefour, houve uma combinação dos pontos acima listados.

Existe, hoje, movimentação no sentido de cooperação entre a indústria de consumo e o grande varejo/atacado/distribuidores no sentido de buscar uma simplificação e solução para essa situação. Mas, como em tudo o que envolve dinheiro – e muito dinheiro –, existe cuidado e desconfiança de ambas as partes. E qualquer solução passa, necessariamente, por endereçar os seguintes pontos:

1. Precificação por parte da indústria de consumo. Hoje, a forma de precificar privilegia a existência de verbas eventuais, pontuais, em volume representativo. Adicionalmente, isso também leva, por parte da indústria, à prática conhecida como trade-loading, ou seja, incentivos especiais para compras em volumes maiores, o que apenas agrava o problema.

2. Segregação entre o que é prestação de serviço à indústria por parte do varejo/atacado/distribuidor e o que é incentivo dado pela indústria para promoção, propaganda e comercialização do produto.

3. A “departamentalização” das verbas na indústria é outro ponto a ser revisto. O mais indicado seria que as verbas, a despeito de sua origem (suporte à comercialização, remuneração a um serviço prestado ou subsídio à propaganda) fossem geridas de maneira integrada.

4. Inclusão de parte dessas verbas na tabela de preços da indústria. Para isso ser operacionalizado, necessitaria de algum tipo de controle, para que essas verbas, ao longo do tempo, não se perdessem.

5. Como manter a eficiência, por parte da indústria de distribuição, no recebimento dessas verbas, se estas passarem a serem “originadas” pela indústria?

Como se pode ver, o tema verbas recebidas de fornecedores é um nó a desatar que apenas pode vir a ser solucionado (ou desatado) com uma profunda discussão, cooperação e revisão de processos por parte dos envolvidos: indústria de consumo e segmento de distribuição. A pergunta, a ser respondida no futuro e com ações, é se existe ambiente, disposição à transparência e maturidade de ambas as partes para tanto.

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